Não corria qualquer aragem naquela tarde de verão. Na sala, colados às duas ventoinhas que a avó ligara, Joana e Diogo debatiam-se pelo comando da televisão. Ela não podia perder as Navegantes da Lua., ele ia morrer se não visse o Dragon Ball. A avó disse para tirarem à sorte, enquanto lhes ia preparar o lanche. Eles ouviram “matem-se”.
Desataram os dois numa sessão de pancadaria que começou no sofá, passou para as cadeiras forradas a tecido branco e acabou com um desequilíbrio digno de se ver. Joana tentou apoiar-se na mesa bamba, onde descansava a terrina antiga do avô, e Diogo, em queda livre mas de olhos no comando, esticou o braço que bateu com força em qualquer coisa. O som que se seguiu não era de um comando a partir-se no chão. Centenas de anos e de avisos depois, tinham partido a terrina. O avô ia matá-los.
Refeitos do choque inicial, olharam para a avó que nunca se zangava com nada, mas que estava parada entre o corredor e a sala, de pano da loiça na mão e sem pingo de sangue na cara. Procuraram-lhe nos olhos verdes um sinal de que estava tudo bem, mas quando, finalmente, falou, só se ouviu um sussurro.
- O vosso avô vai matar-vos.
Diogo correu para a cozinha e regressou com o balde do lixo. Joana perguntou-lhe o que ia fazer. Quando ouviu o seu plano brilhante de deitar fora os cacos da terrina, abriu a palma da mão e lançou-a com força contra a nuca do primo. Vislumbrou-se uma sequela da zaragata que os tinha posto naquela situação, mas Joana apressou-se a travá-lo e a dar-lhe a solução. Tinham de colar a terrina.
Depois de colocarem os pedaços da terrina num saco de plástico, vasculharam a casinha onde o avô guardava ferramentas e coisas que levava para a horta. Encontraram garrafas de Sumol cortadas ao meio, feitas em copos. Latas cheias de pregos de todos os tamanhos. Rolos infinitos de cordel castanho. Mas nem um tubo de cola para os salvar.
Joana deixou de ver o primo, mas ouvia o barulho que fazia a mastigar, como se estivesse a tentar engolir toda a comida do mundo. Chamou-o e recebeu de volta um “vou já” de boca cheia. Deu com ele de cócoras na cozinha. O cheiro do café com leite que não chegou a lanchar encheu-lhe as narinas e quase a distraiu do seu propósito. Foi o que viu a seguir que a trouxe novamente à realidade. Diogo tentava colar a terrina com pastilha elástica cor-de-rosa. Olhou para a prima e encolheu os ombros.
- Assim até cheira a morango.
Joana fez, novamente, mira à nuca do primo, mas distraiu-se com o frasco azul e branco em cima do frigorífico.
- Larga isso. Encontrei a cola.
Sentaram-se os dois no chão do quarto onde costumavam brincar, e Joana obrigou Diogo a descolar cada pedaço de pastilha elástica que se misturava com os cacos da terrina. Depois, como se de um puzzle se tratasse foram juntando todas as peças.
Não estava um trabalho perfeito. Aqui e ali, notavam-se pingos de cola que não tiveram tempo de limpar antes que secasse, e a pega da tampa tinha uma lasca para a qual não havia solução. Pelo menos além de pintá-la com caneta de feltro, como sugeriu Diogo.
Satisfeitos com o resultado, colocaram a terrina no centro da mesa, e fingiram que o facto da avó pegar no terço naquela altura era apenas uma coincidência.
Sentados no sofá, com vista directa para a mesa, Joana e Diogo só se mexiam para respirar, e, esporadicamente, pestanejar. Observavam o avô, enquanto comia um pedaço de pão com queijo.
De súbito, parou de mastigar. Isso não seria tão preocupante se tivesse engolido o pão que ainda tinha na boca. Arregalou os olhos e aproximou-se da terrina. Aflitos, os primos viram o avô levar a mão ao centro da mesa e pegar em qualquer coisa que pensaram ser uma parte da terrina que se tinha descolado. Olhou para eles, elevou a voz, e mostrou-lhes a mão aberta:
- Que seja a última vez que andam a mastigar pastilhas e as colam pela casa.
A avó, que ouviu o avô gritar, entrou na sala apressada. Viu o ar aterrorizado dos netos e o marido em pé, a fitá-los.
- Acabou!, gritou.
Olharam-na os três, confusos e ela continuou.
- São miúdos. Tu também já foste miúdo, fizeste os teus disparates. Partiram a terrina, e então? Vamos matá-los?
Antes que o avô aceitasse a sugestão, Joana e Diogo correram a trancar-se no quarto.
- Queres uma pastilha?
Joana olhou o primo de soslaio e abriu a palma da mão.
Ahahah. Muito bom! 🤣
Tens sempre o dom de me levar de volta ao passado com as histórias que contas. Obrigado!